terça-feira, 10 de abril de 2012

GAVETAS DA ALMA

O telefone toca. Do outro lado da linha uma voz rouca fala palavras desconexas as quais não consigo entender. Repito várias vezes alô, alô, indago sua identidade e não tenho retorno. A ligação cai e, por um momento, fico aguardando outra chamada, mas nada acontece. Penso que deve ser algum desocupado tentando preencher seu tempo com algo irritante...
Volto as minhas atividades cotidianas e o telefone continua mudo, enquanto o silêncio invade a casa. Passo a imaginar como o silêncio é importante em determinadas horas. Através dele, posso fazer um mergulho no meu interior e começar a dialogar comigo mesma. Abro as gavetas da alma e revisito todas. Retiro os resíduos, limpo tudo e volto a fechá-las. Em cada uma delas estão guardadas lembranças, sonhos, ilusões, fantasias, utopias. Abro-as novamente com cuidado para não perder o encanto. É como se as gavetas abrigassem cristais, finos, frágeis, que somente com muita delicadeza se pode tocar.
Resgato lembranças da infância, dos tempos idos, vividos intensamente, regidos pela inocência e ingenuidade. O afeto recebido dos meus avós, o carinho e a preocupação dos pais com o crescimento e educação dos filhos, os amigos, enfim, consigo vislumbrar a roda viva de uma família grande. As brincadeiras simples da época, sem mídia eletrônica, mas tão divertidas, criativas as quais forçavam a imaginação na busca da criação e da arte. Vivíamos num mundo bem diferente do atual. Poucos valores permaneceram na sociedade. Faço uma parada especial na minha adolescência de insegurança, medos, sonhos e amores platônicos. Esta foi uma fase bastante difícil, com mudanças efetivas no corpo, nas relações com o sexo oposto, quando se começa a enxergar o outro que passa a nos atrair. Daí, facilmente começa-se a sofrer por paixões não correspondidas. O receptáculo onde coloquei a juventude estava intacto. Os avanços, a compreensão do mundo e a profissão escolhida. A caminhada que persegui na busca do foco do que eu queria para a vida futura.
A idade adulta me deu a segurança que não tinha na adolescência o que acontece quase sempre com qualquer pessoa. A consciência da responsabilidade que passei a encarar.
Das gavetas não exalavam odores, mas os sabores e dissabores de um tempo quase esquecido. Revirei, remexi os espaços mais íngremes das gavetas para não escapar nenhuma recordação. Divaguei no silêncio e na contemplação, reorganizando pensamentos e, em seguida, fechando cada compartimento da alma numa atitude de respeito a um passado que continua a fazer parte da minha vida até hoje.
Volto à turbulência com o toque do maldito telefone. Atendo. Do outro lado da linha uma voz plena de felicidade avisa o nascimento de mais um sobrinho. Bendigo aquele chamado! Agora, o futuro está diante de mim para anunciar que o ciclo se renova, que o amor continua existir e vale a pena viver, sempre.

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